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domingo, 16 de outubro de 2022

Voltando à Realidade - ou "O Verdadeiro Voo da Fênix"

 É tudo muito estranho quando você passa por uma internação por conta de um surto psicótico. Porque durante o surto, você vive num limbo entre a realidade e as alucinações. Quando a medicação começa a fazer efeito, as alucinações vão embora - e com isso a realidade também parece perder todo o sentido. É como cair infinitamente dentro do buraco do Coelho de Alice: parece que o chão nunca vai chegar. Mas, enfim, se você não tem mais alucinações, já não é mais com o hospital: eles te dão alta e você é encaminhada a um Caps.


E eu continuei o tratamento no Caps, à base de haloperidol e clonazepam. Eu olhava pra coisas e pessoas e não entendia nada. Fiquei assim, como criança, meio abobalhada, quase como se enxergasse o mundo pela primeira vez. Era meu pai que me carregava pra cá e pra lá e organizava minhas agendas de consultas com psiquiatra, psicóloga, assistente social. Foi meu pai que praticamente me carregou pra tirar a segunda via dos documentos que destruí durante o surto. E eu mal me equilibrava - lembro que o haloperidol me fazia ficar saltando de um pé para o outro incontrolavelmente, além de fazer tremer muito as minhas mãos. Eu tinha verdadeiro pavor de sair de casa sozinha, não tinha condições sequer de atravessar uma rua tranquila. Meus sentimentos ainda estavam muito embaralhados, apesar do intelecto me torturar com as lembranças das mágoas que deixei por aí. Minhas consultas com a psicóloga não rendiam, porque eu, aparentemente, nunca tinha nada a dizer, eu só queria ir embora pro aconchego do meu lar que era onde eu me sentia segura. O mundo todo parecia um grande monstro, cheio de seus prédios e carros, querendo me engolir. Ainda tive que trocar o antipsicótico, já que os efeitos colaterais do haloperidol ficaram insuportáveis. Eu só queria ter minha vida de volta, ter amigos e sair sem medo como antes. Mas como demorou...


Com o fechamento do Caps onde eu me tratava, comecei a me tratar numa Clínica da Família. O primeiro psiquiatra que peguei não era tão bom assim, mas tive muita sorte com o segundo, com o qual estou até hoje. Depois de uma longa conversa, ele detectou a minha necessidade de tomar um estabilizador de humor (até então, eu estava sendo tratada como esquizofrênica, que foi o diagnóstico que me deram no Caps, sem nunca terem perguntado o meu histórico). Foi então que minha vida foi se equilibrando, as doses do estabilizador se ajustando, até controlar a depressão. Com uns 2 anos de tratamento, sem nenhum outro sinal de alucinação, me foi retirado o antipsicótico. Menos um remédio pra tomar. Hoje tomo apenas o estabilizador de humor, a prometazina pra me ajudar a dormir, e o clonazepam pra ansiedade - além do propanolol, que controla o tremor das mãos. Conforme fui me sentindo bem disposta e sem tremores, foi me batendo saudade daquela vida ativa que sempre tive - afinal, depois de separada, sempre morei sozinha. Mas meus pais hoje têm medo que eu volte a morar sozinha e tenha outra crise. Eu os compreendo. Mas eu precisava me sentir livre de algum modo, afinal, já eram quase 3 anos de estabilidade.


Então lembrei da minha adolescência: de quando toda minha alegria era resumida em escolher um filme qualquer no cinema e depois tomar um lanche num fast food qualquer. E foi isso que fiz no fim do semestre passado: no começo fiquei muito ansiosa, afinal agora era eu comigo mesma. Confesso que na hora do lanche, minhas mãos tremeram um pouquinho. Mas voltei pra casa me sentindo vitoriosa! Tanto que repeti o feito no mês seguinte. Estava eu de novo botando os pés no chão, recomeçando a andar. Depois disso já saí sozinha várias outras vezes, principalmente pra entrevistas de emprego (cheguei a arrumar um, mas não durou 3 dias, não me adaptei bem). O importante é o bem que isso tem feito à minha autoestima!


A vida da gente é assim mesmo: ciclos se fecham, ciclos se abrem... Mas se isso tudo teve um propósito, foi pra eu levar mais empatia a todos os lugares e provar à mim mesma que, eu posso cair, mas eu sempre me levanto!!


Gratidão, meus Orixás!


Axé-Shalom!

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Nas Profundezas dos Olhos Negros

 Eu estava ativamente na militância da universidade da qual fazia parte e havia uma insatisfação geral entre universitários do Brasil sobre a forma que o nosso ensino estava sendo tratado. Inspirados em outras universidades, fizemos uma assembleia entre nossos estudantes e em votação, decidimos invadir e ocupar o prédio da reitoria, de mala e cuia. 


Eram muitos estudantes e com o passar dos dias, fui me adaptando, me ocupando das mais diversas tarefas - de ajudar na cozinha e na limpeza até cuidar da tesouraria do movimento.


Eu o conhecia só de vista, mas sem nunca ter prestado muito atenção. Só lembro que andava com o pessoal da História (depois fui saber que ele era da Filosofia). 


Um dia, me pediram uma tesoura (ou algo parecido) e eu fui, decidida, buscar na minha mala, que estava guardada na sala do reitor. Concentrada, seguia reta meu caminho de entrar na sala e virar à direita, mas ele estava lá, terminando de trocar de roupa. Quando nossos olhos se encontraram, me desconcertei, perdi o prumo, já não sabia mais direito pra onde virar e o que estava fazendo ali. Fiquei hipnotizada por aqueles olhos profundamente negros. Fui despertada pela colega que tinha pedido a tesoura e vinha atrás de mim, sem que eu percebesse.


Me agachei e abri a mala, encontrei a tesoura e a entreguei. A colega se afastava às minhas costas enquanto eu contemplava a mala aberta, ainda confusa, perguntando a mim mesma "o que foi aquilo?...". Foi quando tomei um susto: uma mão tocou rapidamente o meu ombro e quando olhei pra trás e ergui o olhar, era ele, o dono daqueles olhos negros no qual me perdi. Muito acanhado e de cabeça baixa, ele quase sussurra:

- Er... Por acaso você poderia me emprestar um pente?...

Eu, nervosamente, comecei a buscar meu pente pela mala até que encontrei e entreguei, evitando olhar no rosto dele. Fechei toda a mala e quase corri pra fora da sala, pra me distrair com as várias outras tarefas que tínhamos. Depois de um tempo ele me procurou com o pente e, ainda timidamente, disse apenas "obrigado". Devo ter respondido o meu costumaz "imagina!", e assim se seguiu o dia.


Não deve ter passado 2 dias e ele, da mesma forma tímida, veio pedir o pente novamente. E novamente. E novamente. Eu já não aguentava aquela agitação que ele me provocava, mesmo tão tranquilo, e entreguei o pente:

- Toma! Fica com o pente com você! Eu não uso mesmo... No fim da ocupação você me devolve...


 Uma noite, pra comemorar 1 mês de ocupação, fizemos uma "festinha". Eu bebi horrores e alguém botou forró no som. O melhor amigo dele me convidou pra dançar e eu aceitei toda feliz - tinha tempo que eu não dançava forró. Me diverti muito e ao longe vi que ele também dançava com outra moça. Em determinado momento, os 2 casais se encontraram no meio da pista e se separaram: o amigo dele pegou a outra moça pra dançar e eu mal consegui olhar pro moço de olhos negros, nós dois não conseguíamos nos encarar. Ele era visivelmente mais novo que eu mas mexia comigo de uma forma que me dava medo. E ele parecia ter medo de mim também. Ficamos por alguns segundos parados no meio da pista, mas sem coragem de dançar. Arrumei uma desculpa e saí.


No total, ficamos 3 meses morando no prédio da reitoria. Aos poucos percebi que ele queria se aproximar, mas pra mim era difícil me abrir. Até que em uma das várias reuniões que tínhamos lá, com o objetivo de expulsar um dos integrantes da ocupação, eu me ausentei com a desculpa de fazer café e não voltei mais: fiquei chorando na varanda do segundo andar. Foi quando ele se aproximou e não sei bem como começou, mas de repente me vi contando várias coisas da minha vida pra ele, inclusive coisas que vivi com o tal aluno expulso. Daí em diante trocávamos memes quando conseguimos hackear os computadores do prédio e ríamos muito. Foram várias outras conversas sobre esoterismo, UFOS que buscávamos nas noites no terraço do prédio fumando, vários tipos de magia, ocultismo em geral. Ele me ensinou que satanismo não tem nada a ver com o que a sociedade pensa. Na nossa visita com amigos até um grupo de indígenas que resistiam no Maracanã, não nos desgrudávamos de tanto assunto. Lá recebi rapé pela primeira vez e tomei ayahuasca, num ritual de limpeza. Mas isso é outra história...


Só sei que das dezenas de alunos que ocuparam a reitoria, só restamos 12. E a princípio, ficamos inseparáveis. Juntávamos todos, cada um levando uma coisa, na casa de um de nós e fazíamos uma farra! Todos sem grana, mas juntando o que cada um levava, fazíamos altas receitas! Até que foi o dia de todos irem pra minha casa. Foi divertidíssimo, era verão e aproveitamos o sol no meu terraço, com o som no talo (pra incômodo dos vizinhos), tomando banho na caixa d'água. Passeamos a pé em Madureira; cantamos, bêbados, "Evidências", a plenos pulmões pelas ruas. Com o passar dos dias, cada um teve que ir, por conta de compromissos. Ficamos só 5.


Peguei os 3 colchões que estavam na sala e os levei pro terraço. A noite estava fantasticamente estrelada. Nossos assuntos não acabavam nunca e nossos amigos já falavam que conversávamos até dormindo (ele dizia algo dormindo - ele era totalmente sonâmbulo - e eu o respondia, também dormindo e vice-versa). Naquela noite, eu me ofereci a compartilhar do mesmo colchão que ele pra continuarmos a conversar, basicamente alheios das conversas dos outros 3.


Dali as conversas aos poucos começaram a ser acompanhadas de carícias e eu, frustrada, pensei que ia ficar por isso mesmo, conforme o sono foi nos pegando. Até que ele me surpreendeu:

- Estou com uma grande dúvida...

- Qual? - respondo com os olhos semicerrados de sono e embriaguez.

Foi quando ele olhou pra mim:

- Se me entrego ao sono agora ou me envolvo com você...

Eu apenas sorri e disse "estou com a mesma dúvida...".

Nos beijamos. Ali, debaixo das estrelas. Acho que estávamos bem bêbados pois o beijo começou estranho, mas logo tudo se encaixou. Foi mágico. Ainda mais com todas aquelas estrelas como testemunha. Ele sugeriu que entrássemos, mas vi que estávamos bêbados demais, não curtiríamos tanto.

Mesmo assim, ele foi muito carinhoso. Ficamos de mãos dadas olhando pro céu, nossas mãos se encontraram por cima das nossas cabeças e se entrelaçaram. Parecíamos um casal de namorados bobos, aguentando as piadinhas dos outros 3 amigos. No dia seguinte, todos ouviam música distraídos na sala e resolvemos escapar para o quarto. Foi tudo perfeito, acho que eu nunca tinha tido tanta química com ninguém. Sua juventude de 12 anos a menos me fez me sentir uma deusa e ele parecia me saborear como uma fruta de época. Quando pensei que eu já tinha visto o céu o suficiente, ele acelerou pra dentro de mim. Senti uma energia muito forte (até hoje me pergunto se era a kundalini), e essa energia foi subindo pela minha coluna em espiral até me deixar sem controle. Eu estava pra gritar, e nosso gozo foi abafado por um beijo profundo que quase me sufocou. Sim, ali EU VI O CÉU. Ele entrelaçou seus dedos nos meus e assim ficamos por alguns instantes, pra nos recuperarmos.


Os dias seguintes foram os mais fofos do mundo. A gente dormia juntinho, ficava fazendo carinhos um no outro... E nossos amigos sempre fazendo pequenas brincadeiras. Fui tratada com um carinho como nunca antes. Até que chegou o dia em que precisávamos ir pra faculdade. Fomos de trem até a Central através do caminho que eu conheço pra "dar calote". Ele me segurava pela cintura no trem como se eu fosse sua. Um amigo nosso passou mal e demos uma passada numa UPA. Ele cochilou no canteiro com a cabeça no meu colo. Mas quando chegamos na universidade, ele já não era mais o mesmo: ele estava deitado no chão e eu sentada ao lado. Me cansei e pedi licença pra deitar, pensando que ele ia abrir o braço pra eu apoiar minha cabeça. Ao contrário: ele fechou mais o braço e se encolheu todo. Já não era mais o mesmo. Era como se toda magia tivesse sumido.


Ainda tentei algumas investidas, mas foi inútil. Tudo parece não ter passado de uma ilusão. Não demorou, soube que ele tinha ficado com uma amiga (uma daquelas 12) e eu fui dar-lhe um esporro. Foi assim que ela também soube de mim e deu um escândalo (provavelmente se achava única como eu, mas amiga é meio pesado, não?). Depois foi uma sucessão de brigas porque eu queria salvá-lo dele mesmo, enquanto tudo que lhe interessava era (muita) bebida, drogas e outras mulheres (algumas que cheguei a pegar de surpresa, o que me machucou demais). Tudo isso enquanto, ao mesmo tempo, ele criava coincidências, provocava ciúmes, me lançava olhares, sempre de forma enigmática. E pra piorar, isso tudo em meio ao meu surto psicótico.


Claro que meu surto distorceu, e muito, a visão das coisas, mas em questões práticas, ele não passou de um canalha. Demorei pra perceber mas percebi faz tempo! Mas sabe o que é o pior? Eu não guardo raiva dele. Pelo contrário, espero que esteja bem. Hoje não o desejo mais na minha vida porque ele bagunçou minha cabeça demais. Mas confesso que sinto saudade. Saudade daquele olhar profundo e acanhado. Dos nossos papos de ocultismo. Das nossas trocas de memes. Do som delicioso da sua risada (e nisso todos concordavam). Mas, enfim, se a Vida que levou, é pra eu ter histórias mais bonitas no futuro.

Ufa!...

Axé-Shalom!