À meia-luz em seu apartamento, depois de um dia que parecia surreal demais, ele se debruça na janela como quem busca algo no céu.
Não demorou muito, o interfone tocou: era o porteiro informando a chegada de uma encomenda.
- Poxa, acabei de chegar em casa...
- Não se preocupe: eu posso receber pro senhor.
Logo o porteiro tocou sua campainha com um embrulho cuidadoso de papel pardo reforçado com barbante nas mãos. Agradeceu confuso, pois não havia encomendado nada - mas havia um pequeno envelope preso com durex.
Do embrulho vinha um aroma que ele bem conhecia. Memória olfativa.
Se apressou então a desenrolar o barbante e rasgou com pouco cuidado o embrulho apoiado na mesa: era a tão conhecida torta de chocolate que só uma pessoa sabia fazer. E era o que mais precisava naquele momento.
Cortou uma fatia da cremosa torta e sentou à mesa. Só enquanto degustava a primeira garfada, lembrou do envelope que deixara ali ao lado - meio arriscado comer algo assim de onde nem tem certeza de onde veio.
Se apressou então em abrir o envelope que continha apenas um pequeno cartão com as seguintes palavras escritas à mão:
"Quando olhar para o céu e ele lhe parecer escuro demais, lembre que, assim como essa torta, ele também pode ser doce (até porque há alguém por lá que olha por você).
Se precisar de outra torta de chocolate, você sabe onde me achar."
A segunda garfada desceu mais difícil. Pegou o cartão, o prato de torta e voltou à janela, tornando a admirar o céu - nesse momento, uma estrela cadente atravessou o céu do bairro nobre e o sal de suas lágrimas se misturava ao açúcar do chocolate, criando um novo sabor em sua língua - o sabor de saber que nunca esteve nem nunca estará só.
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Do outro lado da cidade, depois de ter recebido a mensagem do entregador avisando da missão cumprida, ela resolveu descansar depois de limpar a cozinha, tomando um banho morno e iniciando seus rituais físicos e espirituais antes de se recolher pra dormir.
Já havia se embrulhado toda nas cobertas como num casulo - mania antiga que sempre retorna no inverno - plugado o celular no carregador e, justo no momento em que ia ativar o modo "não perturbe", uma mensagem chegou no celular.
Não havia palavras, eram só 4 emojis: o primeiro, um sorriso com uma lágrima, e os outros eram 3 emojis que só eles compartilhavam entre si, até porque a forma que eles se comunicavam nunca fez muito sentido pra mais ninguém.
Era o jeito dele agradecer, ela sabia. Esboçou um sorriso de lábios trêmulos e, com os olhos marejados, retribuiu os 3 emojis de sempre.
Ela quis ter feito mais, dito mais... Mas a essa altura da vida, ela já aprendeu que dar espaço já é fazer muito.
Ativou o "não perturbe" do celular e se enroscou em seu casulo novamente, olhando para o céu profundamente escuro naquela noite através da janela. Não buscava por nada: só queria desaguar uma tristeza que nem bem era sua.
Axé-Shalom.