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domingo, 3 de agosto de 2025

Àqueles que virão depois de mim,

Muitas histórias ouvirão sobre mim: umas boas, outras nem tanto. Não importa. Assim como também ouvi histórias sobre aqueles que me precederam e que ao longo do tempo percebi que não eram bem da forma que me contaram. Não venho por meio desta carta explicar ou justificar as minhas histórias, mas contar das buscas e descobertas que tive ao longo dos últimos meses.


Nesses tempos, caminhei por labirintos desafiadores – não porque foram difíceis, mas justamente porque eu já estava habituada. Aprendi a reler cada linha escrita há tantos anos por meus ancestrais, mas que ainda me desenham por dentro e por fora. Revisitar minhas próprias rotas desde a mais tenra infância, tempos de escolinha, de comida de vó. Admirar espelhos impressos ainda em preto e branco e até mesmo aqueles espelhos que foram quebrados nos rumos que a humanidade tomou. Reconhecer em mim olhos, cabelos, lábios, braços e mãos que hoje carregam marcas de aulas de piano e também de muito trabalho duro. Que hoje tentam reproduzir as iguarias que provei em família e até mesmo aquelas que sequer provei e quase se perderam na linhagem. O beiju e o cuscuz do sertão de Sergipe, que minha avó aprendeu de sua mãe indígena. A tradição espanhola do “chuchilo” e da páprica caseira que minha bisavó manteve, mesmo já tão abrasileirada que cultuava Pretos Velhos e benzia vizinhos que a buscavam com problemas do corpo e da mente.


Busquei nomes, lugares, fotos e as histórias escondidas por trás de cada uma dessas coisas. Revi uma foto rara da minha outra bisavó preta, lindíssima e imponente, com as mãos nas cadeiras e me reconheci naquele gesto. Estive também mais íntima da cultura indígena (o que me lembrou muito da minha experiência há alguns anos de uma noite na Aldeia Maracanã ao redor da fogueira, absorvendo as tradições e aprendendo o que é resistência na prática), o que me instigou a tentar reconectar com a etnia de minha bisavó nordestina e me deparar com a longa história de resistência tupinambá liderada pelo chefe Surubi do povo de Itaporanga D'ajuda.


Entendi que muito antes de entender a importância da aprendizagem através da oralidade, eu já vivia isso dentro do meu quintal, sentada no canto da porta de dona Amélia enquanto ela me ensinava artesanatos e o cultivo de plantas medicinais, coisas que às vezes invento de reproduzir. E é de uma forma talvez mais afetiva do que exatamente instintiva que passei e passo a vocês, meus filhos: o respeito pelas plantas, pelos animais, até pelas pedras. Valores da terra que são maiores que os do dinheiro. E também aprendi com vocês, quando me chamavam atenção a algo que eu já estava habituada demais pra me dar conta. Hoje vocês cresceram e sou eu que “ando pelo mundo prestando atenção em cores que não sei o nome” – escrevi então pra que vocês se recordem de não se deixar habituar.


Vocês foram meus primeiros alunos da vida, me inspiraram a atuar na educação de várias outras maneiras, e hoje vim parar aqui: reaprendendo a aprender para poder transformar o mundo que desejo para vocês e os que virão após.


Então sigo em frente: levanto ao nascer do sol, beijo a imagem de Nossa Senhora da Conceição segurando as guias que dona “Concheta” me ensinou mesmo em sua ausência, atravesso a cidade que cansei de atravessar (e que também foi atravessada pelos que vieram antes de mim), e me reúno a outras vivências, saberes e formas de experimentar o mundo, na esperança de continuar semeando um mundo melhor e mais justo para todos os povos e indivíduos. 


E a vocês, filhos meus, de sangue e de afeto, só desejo que guardem convosco a mensagem: não deixem de ouvir o vento que traz a voz dos antepassados, nem de semear aquilo que queremos que os que virão depois de nós venham a colher. 


Rio de Janeiro, 10 de julho de 2025.


(Trabalho final da disciplina "Antropologia & Educação I".)

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