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terça-feira, 3 de outubro de 2023

"Como será o amanhã?...

...Responda quem puder
O que irá me acontecer?
O meu destino será como Deus quiser
Como será?"

Ontem à noite, fui invadida por uma fome inexplicável, e estava eu, quase meia-noite, fritando e comendo pastéis (adivinha quem acordou passando mal hoje??? Mas isso é outro assunto...). Quando sentei pra comer, estava passando aquele especial que a Globo produziu pelo Dia da Terceira Idade (protagonizado por Zezé Motta e Andréa Beltrão, não lembro agora o nome do especial - deve ser a idade, rs). Confesso que eu esperava mais do programa pelo que foi anunciado, mas só pelas protagonistas, de quem sou fã, já valeu a pena.

Numa das cenas mais marcantes, Bex (a personagem de Zezé Motta) cantava num videokê "O amanhã" (conhecida pela gravação de Simone), e chamava a apressada e preocupada personagem de Andréa Beltrão a cantar com ela, compartilhando as duas um momento descontraído. Sentada no sofá da sala, levando um pastel à boca, fui hipnoticamente teletransportada a um outro tempo e outra época.

Já são cerca de 4 anos e meio desde que fui transferida ao Instituto Municipal de Saúde Mental Nise da Silveira, onde fui surpreendida pela informação que teria direito a participar de oficinas de artes semanais - atividade que infelizmente não tinha na Colônia Juliano Moreira. Apesar de não ter querido participar na minha primeira semana lá, os dias estavam ficando cada vez mais sufocantes, trancafiada num espaço pequeno, no qual as únicas distrações disponíveis eram uma TV (que, ainda em surto, eu me recusava a assistir por achar que ela estava "falando" comigo), um rádio ruim que só vivia numa estação de músicas gospel (que também não me agradava por não ser da minha fé) e caminhar de ponta a ponta o curto corredor que interligava os dormitórios, com as janelas fortemente gradeadas. Já enjoada dessa última atividade, passei a contar os dias para o próximo dia de atividade. O primeiro que participei, foi uma oficina de miçangas e de desenho (me engajei mais nessa última atividade). Aliviou um pouco aquela sensação de "detenção", e por isso ansiei ainda mais pela próxima. Chegou então a outra semana e, pra minha surpresa, ao ser levada à sala de atividades, fui surpreendida por cadeiras posicionadas num grande círculo, e no meio, um tecido entendido no chão e sobre ele, vários instrumentos de percussão espalhados. Meus olhos brilharam!! Entrei e escolhi meu lugar timidamente, os 2 instrutores explicaram que aquela era uma oficina de música, e que nós podíamos ficar à vontade pra cantar com eles e usar tudo na sala. 

Nas primeiras músicas, me reservei a bater palmas, depois fui fazendo coro das músicas populares que começaram a cantar, foi quando uma paciente mais antiga, que estava sentada ao meu lado, escolheu uma música cuja letra estava numa pasta que nos disponibilizaram e ela, empolgada, pegou no microfone que estava ali, entre nós. Só que ela era muito desafinada e não acompanhava o compasso da música, se enrolava com a letra... Comecei tentando ajudá-la a cantar, mas nada adiantava. Então, com o incentivo dos outros participantes (e da própria colega que reconheceu que não estava dando conta), peguei o microfone com a intimidade que os anos trabalhando com música me deram e dei continuidade, pra espanto principalmente dos orientadores. Peguei também a pasta pra acompanhar a letra, e ao fim da canção os orientadores perguntaram como eu sabia cantar tão bem. Expliquei rapidamente que eu sempre trabalhei com música, que sou de família de músicos, etc. Eles logo escolheram outra música na pasta e comecei a cantar:

"A cigana leu o meu destino
Eu sonhei!
Bola de cristal
Jogo de búzios, cartomante
E eu sempre perguntei..."

Em toda a minha vida, tão cheia de altos e baixos e com os acontecimentos dos mais bizarros, eu jamais havia previsto que um dia eu passaria pela situação de estar internada num hospital psiquiátrico. Mas, sabe o que me surpreendeu mais ainda?? Minha capacidade de resiliência. Mesmo em estado psicótico, eu tinha sempre meu comportamento elogiado pelos enfermeiros (minha única "peraltice" era desenvolver técnicas cada vez mais eficazes em fingir que tomava a medicação e escondia nos locais mais improváveis, jogando pela privada e dando descarga na primeira oportunidade). Até as profissionais que nos serviam as refeições me adoravam, porque eu não tinha frescura de comer nada, fiz amizade com elas. Mas acho que, por mais que eu ansiasse pelo dia da minha alta, a alta era apenas 1 degrau de uma longa escadaria que, de lá de dentro, não podíamos vislumbrar...

"O que será o amanhã?
Como vai ser o meu destino?
Já desfolhei o mal-me-quer
Primeiro amor de um menino..."

E eu cantei. E não só cantei: passei o microfone a outrem e me senti motivada a explorar os instrumentos de percussão, um a um, acompanhando os orientadores, motivando também as outras internas a cantar também. Daí lembrei como é bom fazer música!! Nem que seja tocando um simples reco-reco, ou um mais complexo agogô, simplesmente sentir a música e se fazer parte dela, sentir o ritmo do coração pro corpo... E, por uma hora, pudemos esquecer um pouco a dura realidade da internação antes de voltarmos ao "calabouço" pra podermos almoçar.

Semanas depois, passei a aceitar a medicação, conquistei até o direito a passeios externos com acompanhante (inclusive conheci o inesquecível Museu Nise da Silveira), fiz as pazes com a família e finalmente chegou a alta. Chovia muito e quase que não deu pro meu pai me buscar, esperei agoniada das 9 às 15:30 hs... E voltei pra casa. Eu pensei que ia respirar aliviada, mas me dei conta de que eu ainda não teria paz, era só o começo: compromissos semanais com assistente social, com psiquiatra, psicóloga, tirar documentos... A incerteza sobre a constância da minha sanidade e instinto de independência, sobre meu futuro a partir dessa experiência (principalmente profissional)... Graças aos deuses estou bem melhor hoje, mas ainda tentando me levantar. A única certeza que tenho hoje é que sou muito mais forte do que às vezes tenho consciência.

"E vai chegando o amanhecer
Leio a mensagem zodiacal
E o realejo diz
Que eu serei feliz, sempre feliz!"

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