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domingo, 30 de novembro de 2025

Quando você entrou em mim como um Sol no meu quarto

"Mais uma noite quente de verão. Deitado, olhando pro teto e com um dos braços acima da cabeça, tentei dormir.

Mal fechei os olhos e um cheiro de tangerina invadiu o quarto, junto com um vento que eu não sabia de onde vinha. Abri os olhos e era ela: vinha em minha direção, sua longa saia esvoaçante e os cabelos revoltos pelo vento. Vestia a mesma roupa que exibia sua cintura faceira e me deixou sem reação no último encontro, mas dessa vez, as peças eram alvas.

Assustado, pisquei os olhos e os esfreguei com a mão que eu havia pousado sobre a barriga. Ela se aproximava pé ante pé, como quem brinca na corda bamba. Olhei pro lado pra me certificar de que quem dormia ali não estivesse vendo o mesmo que eu: não havia mais ninguém.

Ela então chegou perto da cama e com a leveza de uma entidade, se debruçou sobre mim. Olhou dentro dos meus olhos e me farejou como uma onça no cio. Depois foi descendo ao meu peito e me esfregou sua cabeleira como uma gata pedindo afago. Eu não tinha reação.

Queria mandá-la embora, dizer que aquilo era uma loucura: fazer o certo a fazer. Mas ao mesmo tempo, eu só queria mergulhar mais fundo.

Ela então subiu de novo e me encarou face a face. Seu cordão de aço com pingente de hexagrama e uma corda ou lã avermelhada atada (ligado à algum ritual que desconheço) escapou de dentro de seu decote e balançava sobre meu queixo. Respirei do hálito que sua boca exalava como se sugasse minha própria vida.

Uma de suas mãos apoiada acima do meu ombro agarrou meus cabelos e ela desfilava sobre mim aquele aroma delicado. Tudo era irresistível demais pra negar.


– Então, é você a Serpente do meu Paraíso?... – sussurrei. 
Sem parar de dançar sobre mim, respondeu:
– Todo Jardim do Éden tem uma Serpente e um Fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal... Você escolhe o que sou pra você..." – e entre os cabelos me fitou com um semi-sorriso de quem queria testar minha sanidade.

Sanidade esta que perdi nesse momento: a mão que eu tinha pousado sobre a minha cabeça agora agarrava seus cabelos rebeldes pela nuca, e tentava pressionar seus lábios rubros contra os meus. Ela resistia: mostrava os dentes, oferecia a orelha, me olhava como quem estava no comando.

Ainda sobre mim, se desvencilhou e ergueu mais o tronco: pegou minha mão e juntos abrimos vagarosamente o zíper de seu colete, enquanto ela dizia:
– Então... Parece que você fez sua escolha...

Com a voz entrecortada pela respiração ofegante, suspirei e olhei pro alto:
– Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizeis uma palavra e serei salvo...

Sorrindo como quem vence uma batalha pela minha alma, ela termina de abrir o zíper e orienta minhas mãos pelo seu corpo. Minhas mãos finalmente exploram aquela cintura que tirou meu sono.

Ela continua dançando sobre mim, volta a se debruçar. Me beija e seus gemidos em meu ouvido soam como canto de sereia a me levar pro fundo das águas...

Minha língua então explora as curvas de seu colo: sua respiração intensifica, os suspiros agudizam, seus olhos reviram e seu corpo se abre e se entrega pra mim como se o próprio fato de me trazer de volta à vida a levasse ao êxtase (onde chegamos juntos).

Então acordei. Molhado de fluídos que não sei identificar ao certo e buscando sua presença ainda tão presente em meu quarto. Eu queria ficar ainda deitado pra retomar o fôlego, mas olhando aquele outro corpo que dormia ao lado e minha própria situação, achei melhor acelerar uma ducha e vestir roupas limpas. Me senti um adolescente tentando esconder as peças sujas no fundo do cesto, esperando que ninguém reparasse ou comentasse. Não tenho mais idade pra essas coisas...

Voltei a deitar, mas o sono não vinha: queria revisitar aquele cenário, voltar a sentir os cheiros e a pele. E se eu mandasse uma mensagem?...

Longe demais. Deixa pra lá. Uma pena..."

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Coração Selvagem

Foi tanto tempo sem nos vermos que eu já tinha esquecido da possibilidade de te reencontrar... o que, curiosamente, sempre acontecia furtivamente às quartas-feiras.


E essa segunda-feira – depois de tantos impedimentos pela semana acadêmica e de tantas tribulações pessoais – me surpreendeu positivamente em vários âmbitos. Só não esperava... você.

Dessa vez, não foi furtivamente.
Você não passou apressado, cumprimentando de longe. Parou – sorriso prestimoso, feliz – perguntando como estávamos. Nos reunimos ao seu redor, e eu quase não consegui dizer nada.

Ia falar o quê?

Das vezes em que parei no píer pra ver as barcas indo e vindo, com Belchior no ouvido e você na cabeça?
Das noites insones em que você entrou pelos meus olhos através das palavras de Durkheim?
Do último sonho em que você parecia bravo comigo – talvez porque, em vigília, eu tenha flertado com o rapaz que trabalha na vila?
Ou de como os raios de sol, naquele ângulo, transformavam seus olhos em vitrais – coisa que eu nunca tinha reparado antes?

Até que um dos meus colegas comentou que a professora de hoje explicava certos termos da sua área de um jeito muito mais complicado.
Você começou a falar sobre o assunto brevemente, pois logo a minha amiga ao lado te interrompeu – e ela parecia ter incorporado os meus instintos mais primitivos, quase se derretendo:

– Ah... a sua voz... que saudade das suas aulas!

Fiquei impassível, como uma adolescente assustada com seu diário violado.
Meus colegas começaram a rir: “ih!”, todos nós meio chocados.
Ela, coitada, tentava se explicar – mas os outros (homens, né?) já faziam piadinhas, e você riu com aquela timidez tão mineira:

– Bem, depois de uma declaração de amor acadêmica dessas, não tem como negar ajuda, né?

Depois de mais uma breve conversa – em que consegui balbuciar umas coisas certamente irrelevantes, porque mal me lembro – você se despede:

– Bem, se vocês precisarem de ajuda, é só me procurar. Tô aqui toda quarta...

Eu sei. Eu já sabia.

Com sua indefectível pasta de couro (segurada pelas duas mãos, dessa vez), você finaliza:

– Agora tenho que ir pra aula... Tchau.

E se foi, afastando-se de costas, deixando a sua presença em mim pelo resto do dia.

Não me contive: assim que o vi adentrar o prédio, me voltei pra minha amiga:

–Você tá doida??? Roubar meu crush intelectual assim, na cara dura? Quer furar o olho de mamãe???

A coitada só conseguiu responder:
– Cruz credo! Nada a ver! E eu nem sabia...

Pudera – a gente se trata como mãe e filha justamente porque eu tenho idade pra ser mãe dela... e você, pra ser meu pai – talvez por isso você tivesse rido tão gostosamente.

Um dos meus amigos, um pouco mais velho que ela (mas ainda longe dos trinta), concordou comigo que você é interessante.
Mas tudo ficou na brincadeira: afinal, ela é muito nova, está namorando – e gosta de um padrão de rapaz que nenhum de nós entende, rs...

E foi assim que “a turma do outro bairro" viu e soube que eu te amo.

“Amo?"
Desculpa, mas é que “o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”, e talvez você "possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria – e esse jeito de deixar sempre de lado a certeza e arriscar tudo de novo, com paixão".

Talvez você pudesse, dentre tantos que não puderam antes...
Talvez eu pudesse ser seu Arco-Íris, Anjo Rebelde...

Ah, deixa pra lá!
Nessa vida tão concreta que tenho levado, você já tem sido o Sol que ilumina meus dias.

“Esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão...”

Axé-Shalom-Amen!

(Salve Belchior!)

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Os Lírios Universitários

Desde as férias, eu já havia me acostumado com a ideia de que não teríamos mais aqueles encontros semanais de costume. Talvez, com alguma sorte, nos esbarrássemos pelo instituto — mas era uma hipótese tão remota que logo se perdeu entre os textos das novas disciplinas e as tarefas da vida prática, como a mudança de casa. Coisas de gente adulta, enfim.


Algumas semanas atrás, porém, aproveitando que meus colegas viciados em elevador já tinham descido enquanto eu ainda estava no banheiro, resolvi descer os quatro andares de escada — como sempre preferi. Ia cantarolando Maluco Beleza (de Raul Seixas), num passo quase saltitante, como se ninguém me visse — nada muito escandaloso, claro. Ao chegar ao térreo, concentrada em reencontrar meus amigos, atravessei a grande porta que dá acesso ao saguão do prédio.


Essa porta, larga e pesada, não permite ver quem vem no sentido contrário — e, convenhamos, quase ninguém usa a escada. “Trombadas” ocasionais são comuns, especialmente pra quem está distraída como eu. Só que, dessa vez, o corpo em que quase trombei era o dele.


Ele também pareceu surpreso, com sua indefectível pasta de couro pendendo do ombro e um sorriso contido escapando pela situação. Eu, por minha vez, quase empalideci. Tentei disfarçar: um “ooooiii...” tímido foi tudo o que consegui articular. Ele respondeu com um “tudo bem?...” meio apressado — provavelmente indo dar aula. Ou, quem sabe, também sentindo o impacto inesperado do reencontro.


A cena ficou dias reverberando em mim, até que o ritmo da rotina tratou de dissolver o encantamento. Mas o destino, esse debochado, resolveu brincar: nossos encontros fortuitos no pé da escada começaram a se repetir, em sentidos variados, como se houvesse uma coreografia secreta nos guiando.


Lembro-me especialmente de um deles. Eu descia de elevador com um amigo, e, ao chegarmos ao saguão, o vi de longe, apressado, entregando algo ao porteiro. Acenei — e ele retribuiu com um sorriso. Meu amigo, reconhecendo-o, também acenou. Ele respondeu com um animado “tudo bem?” e seguiu pela entrada lateral, em direção à escada, enquanto nós íamos para a rua.


A vida continuou com sua costumeira pressa: cinco disciplinas, cronogramas, leituras. E, para complicar, ainda me inscrevi num curso de escrita acadêmica — tentativa de “desenferrujar”. Foi a caminho de uma dessas aulas, depois do almoço, que o acaso resolveu se intrometer de novo.


Subíamos o prédio com a preguiça típica da digestão. Fomos escovar os dentes e, num impulso qualquer, decidi retocar o hidratante, ajeitar as presilhas laterais e reaplicar o batom — sob os protestos dos amigos, já prontos há tempos. Talvez fosse o destino, mais uma vez, fazendo seu trabalho de bastidor.


Perto do bebedouro, enquanto enchíamos nossas garrafinhas, percebi um movimento distante: um grupo de moças tagarelando no fim do corredor. Nada de novo — até que, entre elas, um vulto familiar. Mesmo com minha miopia de morcego, reconheci aquele contorno.


Tentei manter a conversa, mas as palavras dos meus colegas já não faziam sentido. Será que ele também me havia notado? Talvez pelo batom vermelho, ou pelas mechas brancas destacadas no penteado lateral. “Mas será que é ele mesmo? Ou coisa da minha cabeça?” Pensei. Permaneci quase muda até seguirmos para a sala.


Foi então que os dois grupos se cruzaram. Ele parecia tentar se desvencilhar das moças, apressando o passo — o que fazia seus cabelos grisalhos caírem sobre os olhos, um dos seus charmes discretos. A cada passo, a certeza crescia. E eu, sem saber pra onde olhar, fingi rir de uma piada qualquer.


O corredor estreitava-se por carteiras abandonadas, e fomos obrigados a passar em fila indiana. Ao chegar até nós, ele ergueu o olhar, abriu um largo sorriso e foi tocando amistosamente o ombro de cada um, num cumprimento — até chegar em mim, a segunda da fila. Depois disso, minha memória se dissolve num branco elétrico.


Quis reagir, dizer algo, mas o corpo não respondeu. Nunca tinha estado tão perto dele. O cheiro — um misto do couro da pasta e de carro de fumante — pareceu ficar impregnado em mim até hoje. Talvez seja memória afetiva, talvez daddy issues (mesmo tendo pai presente). Quem nunca teve gosto duvidoso por cheiros estranhos? Há quem adore cheiro de gasolina; eu, pelo contrário, só sinto ânsia.


Aliás, nem sei se ele tem carro ou se fuma. Mas é alguém com quem eu aceitaria uma carona — quanto mais longa a viagem, melhor...


Já à porta da sala, ainda imersa na ressaca emocional do encontro, minha amiga me trouxe de volta ao mundo:


— Ah, que saudade das aulas dele... — comentou, referindo-se à didática. Todos os presentes concordaram.


Segurando a porta, deixei que as lembranças me invadissem: as trocas de ideias, os sorrisos, os olhares. A forma como ele me dava a sensação de que lecionava só pra mim (sem jamais excluir ninguém). Lembrei dos emojis simpáticos nas mensagens, sempre um pequeno espanto. Então, semicerrando os olhos, soltando os ombros prá frente e tentando disfarçar o suspiro adolescente que escapava, fiz coro com todos:


— AHHH, QUE SAUDADE DAS AULAS DELE...


Torço para que a gente ainda muito se esbarre — mas, quem sabe, da próxima, fora da instituição?


Axé-Shalom!

domingo, 3 de agosto de 2025

Àqueles que virão depois de mim,

Muitas histórias ouvirão sobre mim: umas boas, outras nem tanto. Não importa. Assim como também ouvi histórias sobre aqueles que me precederam e que ao longo do tempo percebi que não eram bem da forma que me contaram. Não venho por meio desta carta explicar ou justificar as minhas histórias, mas contar das buscas e descobertas que tive ao longo dos últimos meses.


Nesses tempos, caminhei por labirintos desafiadores – não porque foram difíceis, mas justamente porque eu já estava habituada. Aprendi a reler cada linha escrita há tantos anos por meus ancestrais, mas que ainda me desenham por dentro e por fora. Revisitar minhas próprias rotas desde a mais tenra infância, tempos de escolinha, de comida de vó. Admirar espelhos impressos ainda em preto e branco e até mesmo aqueles espelhos que foram quebrados nos rumos que a humanidade tomou. Reconhecer em mim olhos, cabelos, lábios, braços e mãos que hoje carregam marcas de aulas de piano e também de muito trabalho duro. Que hoje tentam reproduzir as iguarias que provei em família e até mesmo aquelas que sequer provei e quase se perderam na linhagem. O beiju e o cuscuz do sertão de Sergipe, que minha avó aprendeu de sua mãe indígena. A tradição espanhola do “chuchilo” e da páprica caseira que minha bisavó manteve, mesmo já tão abrasileirada que cultuava Pretos Velhos e benzia vizinhos que a buscavam com problemas do corpo e da mente.


Busquei nomes, lugares, fotos e as histórias escondidas por trás de cada uma dessas coisas. Revi uma foto rara da minha outra bisavó preta, lindíssima e imponente, com as mãos nas cadeiras e me reconheci naquele gesto. Estive também mais íntima da cultura indígena (o que me lembrou muito da minha experiência há alguns anos de uma noite na Aldeia Maracanã ao redor da fogueira, absorvendo as tradições e aprendendo o que é resistência na prática), o que me instigou a tentar reconectar com a etnia de minha bisavó nordestina e me deparar com a longa história de resistência tupinambá liderada pelo chefe Surubi do povo de Itaporanga D'Ajuda.


Entendi que muito antes de entender a importância da aprendizagem através da oralidade, eu já vivia isso dentro do meu quintal, sentada no canto da porta de dona Amélia enquanto ela me ensinava artesanatos e o cultivo de plantas medicinais, coisas que às vezes invento de reproduzir. E é de uma forma talvez mais afetiva do que exatamente instintiva que passei e passo a vocês, meus filhos: o respeito pelas plantas, pelos animais, até pelas pedras. Valores da terra que são maiores que os do dinheiro. E também aprendi com vocês, quando me chamavam atenção a algo que eu já estava habituada demais pra me dar conta. Hoje vocês cresceram e sou eu que “ando pelo mundo prestando atenção em cores que não sei o nome” – escrevi então pra que vocês se recordem de não se deixar habituar.


Vocês foram meus primeiros alunos da vida, me inspiraram a atuar na educação de várias outras maneiras, e hoje vim parar aqui: reaprendendo a aprender para poder transformar o mundo que desejo para vocês e os que virão após.


Então sigo em frente: levanto ao nascer do sol, beijo a imagem de Nossa Senhora da Conceição segurando as guias que dona “Concheta” me ensinou mesmo em sua ausência, atravesso a cidade que cansei de atravessar (e que também foi atravessada pelos que vieram antes de mim), e me reúno a outras vivências, saberes e formas de experimentar o mundo, na esperança de continuar semeando um mundo melhor e mais justo para todos os povos e indivíduos. 


E a vocês, filhos meus, de sangue e de afeto, só desejo que guardem convosco a mensagem: não deixem de ouvir o vento que traz a voz dos antepassados, nem de semear aquilo que queremos que os que virão depois de nós venham a colher. 


Rio de Janeiro, 10 de julho de 2025.


(Trabalho final da disciplina "Antropologia & Educação I".)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

No terceiro dia, as portas se abriram

Há algo que pulsa por baixo da terra e do tempo.

Um fio invisível que nos conecta àquilo que fomos, e àquilo que ainda seremos.
Nessa madrugada, não acendi velas, não recitei salmos antigos.
Mas cantei com as vozes do passado.
Em ladino.
Em lágrimas.
Em silêncio.

Deitei ao lado da imagem de minha bisavó - ou de Nossa Senhora, ou de ambas.
Quem pode dizer onde termina uma e começa a outra?
A chamei como quem chama por casa.
Chamei meus guias, minhas entidades, minhas raízes que respiram fundo sob o solo da memória.
E pedi luz.
Não para ver o mundo…
Mas para ver o caminho.

No terceiro dia, a resposta chegou.
Simples. Sutil. Como se sempre estivesse ali.
Como se só esperasse que eu abrisse o peito, e as portas da alma.
Ali estavam os nomes esquecidos.
Os ancestrais perdidos.
As chaves de uma linhagem soterrada, mas viva.

Descobri então que nem todo ritual precisa de altar.
Às vezes, tudo o que precisa é de uma cama,
uma canção antiga,
e o coração disposto a ouvir o que o mundo espiritual sussurra nas entrelinhas da noite.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Resposta ao Tempo II

 17:


Eu quis correr num caminho de pedras:

Prendi minha sandália e caí.

As coisas que vi e fiz, achei que eram certas,

mais fortes os erros que não cometi.


Deve bastar, essa é a cruz...

Mas é tão tarde, eu preciso voltar.

Quando voltares, apague a luz 

Pr'eu ter certeza que vou me encontrar.


Há quanto tempo...

Que eu nem vi passar.


44:


Eu quis montar meu castelo de cartas:

Achei Rei de Espadas, perdi.

Mágoas e dores eu deixei pela estrada - 

Segui meu caminho, eu não desisti.


Sei me bastar, essa é a luz,

Mas ainda sinto que vou te encontrar.

Se não voltares, marque uma cruz 

no ponto exato onde vou te enxergar.


Faz tanto tempo...

E ainda assim, está.


sábado, 22 de março de 2025

Se um dia eu me for... (Desabafo)

Eu sei que vocês olham pra mim e sentem decepção. Na verdade, eu sempre senti esse peso em cima de mim desde muito pequena, sem entender muito o porquê: talvez por estar sempre sendo silenciada, por sempre ter me sentido excluída em qualquer expressão de afeto, por ter vivido pulando de casa em casa de parentes, por volta e meia ter sido esquecida na escola... Ou talvez simplesmente por ter passado a vida fazendo das tripas coração pra tentar agradar de alguma forma, sendo uma excelente aluna, amada pelos professores, conquistando as melhores notas e buscando a perfeição em tudo que me propus a fazer - mas parece que nunca foi suficiente, né? E continua não sendo até hoje, não importa o que eu faça.


Vcs lembram que eu dizia na adolescência que assim que eu fizesse 18 anos, ia dar um jeito de sair de casa e me livrar desse ambiente tóxico daqui? De um lado, violência verbal e física, além de invasão de privacidade. Do outro, total indiferença. Pois é: eu não saí de casa pra "formar família" não, eu quis FUGIR. E no desespero de sair de um buraco, não pude enxergar que eu caía em outro - mas quando finalmente enxerguei, era tarde demais e meu primeiro filho já estava a caminho.

Vocês podem achar que isso é tudo bobagem, mas por essas e outras, vivi em depressão por cerca de 30 anos. E eu pedi socorro quando eu tinha 15 anos. Pedi pra me levarem no médico porque eu sabia que eu era diferente dos amigos da minha idade, e pq eu não aguentava mais pensar em morrer TODO SANTO DIA desde os 12 anos, quando por muito pouco, quase tentei contra minha própria vida - vocês nunca souberam pq não estavam em casa e eu aproveitei pra tentar alcançar a embalagem de veneno de rato no alto do armário do banheiro. Eu já estava me esticando trepada em cima do vaso quando o telefone tocou. Era minha saudosa tia-avó com uma conversa totalmente non-sense. Ainda atordoada, eu tentava entender porque ela tinha ligado perguntando por vocês se vocês tinham saído dizendo que iam vê-la. Então ela me distraiu até vocês chegarem e desligou. Até hoje nada me tira da cabeça que foi coisa do meu Anjo da Guarda... Mesmo assim, eu não conseguia tirar da cabeça a ideia quase obsessiva de não viver mais - mas aí eu lembrava desse dia e isso me segurava por mais um dia.

E eu sobrevivi a tiro, a uma relação abusiva, uma separação difícil, um boa-noite-cinderela no dia do meu aniversário de 30 anos em que me foram introduzidos objetos que até hoje não sei bem quais foram; vi os filhos pelos quais dei minha vida indo embora, passei fome... E eu me perguntando pq eu ainda resistia. Até que entrei na faculdade e as coisas começaram a mudar. E aos poucos a depressão me abandonou e eu achei que já podia me livrar dos 19 comprimidos diários que eu tomava já que, segundo vcs mesmos, "é tudo bobagem, tá tomando remédio à toa!". Não demorou pro auge das desgraças da minha vida estourar: um surto psicótico que os obrigou a me internar. Não tenho trauma nenhum da internação apesar de não ter sido fácil, mas guardo um trauma muito grande do período de readaptação. Fiquei extremamente sensível a qualquer tipo de estresse. Tenho medo de ter uma nova crise, porque é horrível se sentir incompreendida. Por isso tento fazer tudo certo - o que não me impede de me sentir incompreendida da mesma forma.

Eu nunca fui uma pessoa de grandes luxos. Todos os dias agradeço pelo teto e por cada refeição - pq só quem já não teve o que comer de verdade, sabe o valor que qualquer grão de feijão ou arroz tem. Mas vocês já pararam pra se colocar no meu lugar??? Uma mulher da minha idade, com as minhas condições físicas e mentais, que perdeu tudo, hoje dorme na varanda da casa dos pais sob uma cabana improvisada pra aliviar um pouco a intensidade de sons e luzes; que sempre tá disponível pra cozinhar algo gostoso pra todos por prazer (inclusive a quem nem me dirige a palavra ou se lembra do meu aniversário), que está sempre à disposição pra ajudar no peso das compras, ou mesmo em ajudar em outras tarefas da casa (inclusive na limpeza, quando consigo), ao mesmo tempo em que sou solenemente silenciada, ignorada, diminuída, ainda que eu esteja falando de um assunto sobre o qual tenho respaldo porque - vejam só! - eu ESTUDEI.

Vocês devem pensar "do que adianta estudar tanto se não está trabalhando?". Deixa eu responder: no princípio porque EU ERA TROUXA; porque eu ficava preocupada de deixar VOCÊS sem meu suporte ao longo da semana. Depois parei pra pensar e vi que, pelo desrespeito que vocês têm por mim, eu certamente não sou tão necessária assim. Mas pesquisando o mercado de trabalho, as poucas chances que há pra mim na minha idade prejudicam minha saúde mental e podem me levar à uma nova crise - a não ser que eu estude mais, gostem vocês ou não. E também penso em ter um negócio próprio: já pensei em mil coisas que eu simplesmente não consigo concretizar. E sabem por quê? Por que essa armadura aqui de "mulher foda pacaralho", de "liderança nata" é apenas instrumento de sobrevivência: por dentro ainda me sinto aquela criança insegura que vai dar seu máximo, mas nunca será o suficiente pra nada nem ninguém (e que se surpreende muito - e nem sempre acredita - quando recebe elogios e declarações de admiração e afeto de outras pessoas).

E onde quero chegar com isso? Bem, não sei se vocês sabem ou entendem mas estou pra fazer uma colposcopia com biópsia, que aliás estou esperando há muito tempo pro SUS me liberar, desde o ano passado, quando meu preventivo detectou lesões nível 2 e 3 no meu colo do útero (o nível 3 é o último estágio pra se tornar um câncer). Não estou de fato preocupada, mas quero logo fazer esse exame pra saber se o câncer já me alcançou de fato - pode ser que sim e pode ser que não, mas sinceramente, às vezes torço pra que seja sim: minha vida está perdendo cada vez mais o sentido, me sinto mais mal tratada que os cães dessa casa; a única coisa que me prende ainda nesse mundo são meus filhos, mas eles já estão adultos e não precisam mais de mim - e se precisarem, eu sempre estarei a postos "do lado de lá". Também não quero mais ser um elefante branco no meio da sala de vocês. E eu acho que já deu. Não parece não, mas minha alma está cansada. É um cansaço que fica aqui dentro, roendo um buraco no peito, deixando só um rastro de vazio. Se eu me for, eu vou tranquila: fiz o que quis, da melhor forma que pude. Nunca fui perfeita, mas a Vida me ensinou que querer a perfeição é disputar ego com Deus - e quem sou eu na fila do pão, não é mesmo? Sei que serei bem recebida do outro lado - a família espiritual (ao menos ela!) nunca me abandonou e sempre segurou minhas pontas.

Então, é isso. Eu só queria que vocês soubessem mesmo - e com certeza, eu nunca conseguiria me fazer expressar porque meu pai ou falaria por cima e me interromperia, ou me ignoraria ao dar mais atenção aos vídeos do celular. Ou ainda minha genitora tentaria justificar dizendo que "não se lembra", que é tudo coisa da minha cabeça ou mesmo culpa minha. E eu não quero mais disputar nada não, sabe?... 
Nem mesmo atenção ou razão.

Tô cansada, muito cansada...


(11/fevereiro/2025)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Apenas mais um conto de natal

Eu queria a casa um brinco, mas limpei conforme minha humanidade permitiu.


Eu queria oferecer o melhor banquete, mas tentei fazer o melhor improviso possível diante dos cortes que tivemos. 


E nada disso foi pra ter o "natal dos sonhos" - até porque deixei de ser cristã há anos. 


Eu também não tinha expectativas, pois hoje reconheço e aceito as disfuncionalidades da minha família: eu só queria receber bem meus filhos, como não recebia havia tempos.


E nem fizemos nada demais: bebemos, cantamos karaokê, rimos, enfim, matei a saudade.

(Ah, sim: e cantei performando "All I want for christmas is you" pra eles, porque sim. 🤭)


E quando já estávamos todos bêbados, bem alimentados, sonolentos e nos preparando pra dormir, a caçula abre a mochila e tira uma embalagem - nem prestei atenção porque eu não parava de falar (fico assim quando estou animada).

Meu filho mais velho teve que chamar-me a atenção: "ah, a gente já ia esquecer! O seu presente!".


ÃHN? PRESENTE?


Curiosa, abro o embrulho - "mas eu só queria PRESENÇA!", pensava eu. Era um hidratante de cheiro muito delicado, "capim limão e hortelã", dizia o rótulo. "É cheiro de vó", meu filho brincou, todos rimos. 


Eu já estava abrindo a embalagem pra experimentar o aroma e congelei. Lágrimas me vieram aos olhos. Tomei fôlego pra explicar, pois meus filhos nada entendiam:


- Na verdade... É exatamente o cheiro da MINHA AVÓ!


Esfreguei um pouco nas mãos pra ficar cheirando o perfume da avó que me criou e faleceu há quase 25 anos. Era como se ela tivesse dado um jeito de estar presente, depois da crise de choro que tive no meu aniversário 10 dias antes, me perguntando por onde ela andava pois fazia tempo que eu não a sentia mais por perto. E ela não poderia ter reaparecido de forma mais nobre: através das mãos dos meus filhos.


Muitas vezes sentimo-nos mergulhados em solidão por fechar os olhos da alma: quantas vezes alguém que amamos não está cuidando de nós, de alguma forma?


Feliz 2025!

Axé-Shalom.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Neredesin?

"Foi um vento que passou
Que te trouxe e te levou
Deixando no corpo, a marca do amor
Que ficou no ar, ilusão no ar

A chuva que esse vento traz
Faz com que me lembre mais
De todos os sonhos que a gente sonhou
Planejou demais, demais

Bem que eu podia tentar te encontrar
Mas o vento forte
Que me afastou, te levou
Te escondeu longe demais

A chuva que esse vento traz
Faz com que me lembre mais
De todos os sonhos que a gente sonhou
Planejou demais, demais

E cada vento que soprar
Pode te fazer voltar
Encher o vazio que ficou no ar
E marcou demais, me marcou demais
Me marcou demais..."


"Vamos, precisamos seguir" - ele tinha ido buscar mais informações sobre o que estava acontecendo e retornou com o tom grave de urgência na voz. Não explicou muito, mas nem precisava: eu já sabia o quanto era perigoso permanecer naquele país e o quanto era impossível voltar à nossa vidinha pacata no interior da Capadócia.


Ele então me ajudou a conduzir nossos 3 filhos pequenos e o pouco que pudemos carregar em direção à plataforma do Tünel de Istambul. Havia outros refugiados de todas as idades para todos os lados, alguns sentados pelo chão tentando se aquecer naquele inverno austero. A sensação de melancolia em deixar nossas coisas e nossa terra pra trás me inspirava a criar um poema dentro da cabeça; poema esse que eu ficava repetindo mentalmente pra não esquecer - "assim que chegarmos ao nosso destino, encontrarei um papel pra escrever...". Eu tinha necessidade de registrar, se pudesse ao mundo, a dor que todo aquele conflito estava causando não só a mim e minha família, mas a milhares de pessoas, mas não havia como.


A caminho da plataforma, eu conduzia as crianças maiores em silêncio, mantendo o olhar no chão. Eu ainda podia sentir a mão de meu marido e seu grande vulto pelas minhas costas, me conduzindo. Como eu o admirava: e talvez por isso eu não conseguia fitar seu rosto. Eu sabia que, em algum momento daquela balbúrdia, precisaríamos nos separar momentaneamente, depois de uma vida inteira juntos (visto que nos conhecíamos desde a infância).

E isso me fazia segurar o choro na garganta.


Acordei assustada, curiosa e com a música "Wish you were here" (Pink Floyd) grudada na cabeça. Lembrava das roupas pesadas de inverno, dos sentimentos vívidos de amor e de angústia, do clima de guerra no entorno. Foi aí que eu resolvi buscar alguns detalhes na internet unindo peças do quebra-cabeça com ajuda do Google e do ChatGPT: tudo se confirma que a cena se passou na Turquia, durante a sua Guerra de Independência, no início do século XX. E nem era a primeira vez que eu sonhava com esse país (do qual sempre conheci quase nada): 4 meses antes eu tinha sonhado com a "minha adolescência" na Capadócia, época em que "meu marido" e eu nos apaixonamos (e vivemos um amor proibido, aparentemente por diferenças religiosas - e pelo visto, vencemos as resistências). 


Desde que me conheço por gente, sempre senti uma profunda saudade de algo ou alguém que eu nunca soube muito bem sequer explicar. Me lembro de acordar chorando de madrugada entre 3 e 5 anos por sonhos que se repetiam e chorar pelo mesmo sentimento ao ouvir a música citada de Verônica Sabino ou o tema de Fievel (como se eu entendesse a letra) sentindo uma enorme angústia, um buraco no peito. Eu olhava pela janela à noite e pedia às estrelas que, por favor, me buscassem de volta - mas essa sensação foi sendo apagada conforme fui crescendo e tive que administrar outras questões da vida. Talvez minha psicóloga tivesse razão: tudo isso talvez fosse apenas sintoma de não conseguir me encaixar numa família disfuncional. Vida que segue, né?


E eu achava mesmo que já tinha superado essa sensação depois de anos de terapia e uma vida inteira de todo tipo de experiências (de vida, relacionamentos, espirituais, etc.), mas depois desse último sonho, não consigo mais fechar os olhos sem ver novamente o cenário no Tünel de Istambul, sem sentir a ausência do caloroso e enorme vulto daquele companheiro com o qual compartilhei aquele momento, sem me perguntar se conseguiremos nos encontrar novamente. E voltei a sentir esse buraco no meio do peito novamente, essa saudade doída que aquela pequena eu de 4 anos sentia que só tinha sido preenchida há alguns anos, quando finalmente encontrei meu "Abraço-Casa" - mas do qual a Vida me afastou, mais uma vez (provavelmente por revivermos mágoas de outras existências).


Não posso afirmar com certeza que se tratam da mesma pessoa nas 2 encarnações, mas tem coisas que acontecem que são fortes demais pra refutar...


Curioso: pareço estar fechando um ciclo de 40 anos, afinal, por que isso tudo está voltando agora, que fiz 44?


Axé-Shalom-Görüşürüz!

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Só queria fazer poema

Hoje eu só queria fazer poema.

Olhar para o céu e nele encontrar as palavras certas,

Aquelas de preencher o coração de alguém.

Saber escrever, quem sabe, uma história de amor eletrônica,

De caracteres contados e emoções infindas.

Eu só queria escrever poema

E relê-lo tantas e tantas vezes até acreditá-lo vivo.

Talvez sobre mim. Talvez sobre você.

Eu só queria saber escrever emoções das quais ninguém ainda escreveu.

Mas quem sou eu nesse Universo 

Senão um mero sonho daquilo que escreverei?

(Dannie Machado.)