Desde as férias eu já tinha me acostumado com o fato de que não teríamos mais aqueles costumeiros encontros semanais. Talvez, com muita sorte, nos esbarraríamos pelo instituto, mas era uma ideia tão remota que acabou sendo esquecida por debaixo dos diversos textos que as novas disciplinas traziam consigo e outros ajustes da vida prática como a mudança, por exemplo – coisas de gente adulta.
Porém, há algumas semanas, aproveitando eu que meus jovens colegas viciados em elevador já tinham descido enquanto eu ia ao banheiro, desci de escadas os 4 andares do prédio como sempre preferi fazer. Eu ainda cantarolava "Maluco Beleza" (de Raul Seixas) num passo quase saltitante, como se ninguém estivesse vendo ou ouvindo (nada muito escandaloso, claro), e ao chegar ao térreo, focada em reencontrar meus amigos, passei pela grande porta que dá acesso ao saguão do prédio – essa porta, por ser larga, não dá muita visibilidade sobre quem vem vindo na direção contrária (e são pouquíssimos os que usam a escada); uma certa "trombada" ou outra é comum (principalmente pra quem estava distraída como eu). Só que dessa vez era diferente: era contra o corpo DELE que o meu corpo quase trombou; ele também muito surpreso ao me ver, carregando sua indefectível pasta de couro no ombro e deixando escapar um sorriso discreto pela situação enquanto eu quase empalideci. Tentei ainda fingir normalidade: um "ooooiiii..." discreto foi só o que eu consegui expressar, e ele retribuiu o cumprimento com um "tudo bem?", meio tímido e apressado, provavelmente pra dar aula – ou, talvez, tenha sentido o mesmo impacto do reencontro que eu.
Aquele encontro ficou uns dias na minha cabeça, mas tratei de esquecer, já que eu tinha muitas outras coisas pra pensar. Porém, quis o destino que esses encontros fortuitos no pé da escada passassem a se repetir com cada vez mais frequência, em sentidos variados, e pra minha surpresa, aconteceu até mesmo quando desci de elevador com um amigo: saíamos pro saguão conversando e eu o vi de longe, chegando apressado, entregando ou pegando algo com o porteiro do prédio; acenei de longe mesmo e, com um sorriso, ele acenou de volta, então meu amigo percebeu quem era e também acenou (porque ele realmente é um professor muito querido), e ele de longe respondeu com um genérico mas alegre "tudo bem?", e seguiu pela entrada que dá acesso à escada enquanto nos encaminhamos à saída.
Pois então segui a vida, com vários cronogramas a cumprir (além das 5 disciplinas que peguei ainda inventei de me inscrever num curso de escrita acadêmica na universidade, pra ver se desenferrujo), e foi pra uma dessas aulas depois do almoço que, com a preguiça exigida pela digestão, subi com meus amigos e fomos escovar os dentes. Por um impulso, lembrei de retocar o hidratante facial, as presilhas laterais no cabelo e o batom, cuidadosamente (apesar dos protestos dos amigos que já haviam terminado). Talvez fosse o destino, mais uma vez, fazendo seu trabalho.
Estando todos prontos, nos posicionamos perto do bebedouro no começo do corredor pra enchermos nossas garrafinhas, porém, enquanto eu conversava, percebi um movimento lá na distância da última sala: parecia um pequeno grupo de moças tagarelantes a quem eu não daria muita bola – a não ser pelo fato de ter conseguido identificar em meio delas (mesmo estando mais míope que um morcego) aquele vulto conhecido.
Eu não conseguia mais prestar atenção nos meus colegas, mas também não podia deixar tão evidente meu interesse em confirmar quem era no fim do corredor. Acho que ele também me notou em meio ao meu grupo, talvez reconhecendo pelo batom marcadamente vermelho ou pelas minhas mechas brancas destacadas pelo pendeado lateral – "mas não será coisa da minha cabeça?... Nem sei se é ele mesmo!...". Me mantive quase monossilábica e então seguimos pra sala.
Foi quando nos encontramos no meio do corredor com o outro grupo vindo na direção contrária: ele parecia tentar se desvencilhar das moças animadas apressando o passo (o que agitava seus cabelos grisalhos por sobre os olhos, um de seus charmes) e, a cada passo mais próximo, minhas suspeitas se confirmando e eu sem saber muito o que dizer ou pra onde olhar – segui fingindo que tava rindo de uma piada do meu grupo. Como o caminho se estreitava por algumas carteiras abandonadas ali, os 2 grupos tiveram que se cruzar em fila indiana, e ao passar por nós, ele ergueu o olhar abrindo um largo sorriso, e foi passando tocando o ombro de um por um, cumprimentando amistosamente (pelo menos até mim, que fui a 2ª – não vi mais nada depois disso).
Eu queria reagir, queria retribuir, não sabia como. Eu nunca tinha estado tão perto dele e seu cheiro (um misto do couro de sua pasta com de carro de fumante) ainda parece estar impregnado em mim – não sei se é memória afetiva, mas é provável que eu tenha "daddy issues", mesmo tendo pai presente (enfim, a quem criticar o meu gosto estranho por certos cheiros, pensem que tem gente viciada em cheiro de gasolina, o que me dá dor de cabeça e ânsia).
Aliás, nem sei se ele tem mesmo carro e/ou é fumante, mas taí alguém com quem eu pegaria carona – quanto mais longa a viagem, melhor...
Ao chegarmos à porta da nossa sala, ainda envolvida por toda essa gama de emoções, minha amiga interrompe meus devaneios:
"Ah, que saudade das aulas dele..." – se referindo à sua didática, e todos concordaram.
Segurando a porta da sala enquanto adentrava, relembrei das trocas de ideias, de sorrisos e de olhares, da forma em que ele fazia eu ter a sensação de que dava aula só pra mim (mas sem ignorar nenhum outro aluno), dos emojis que me surpreendiam toda vez que eu precisava me comunicar por mensagem, e só consegui fazer coro, semicerrando os olhos, jogando os ombros à frente e tentando disfarçar o suspiro adolescente que saiu junto:
"AHHHH, QUE SAUDADE DAS AULAS DELE..."
Torço que a gente possa se esbarrar mais vezes, porém fora da instituição.
Axé-Shalom!