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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Pequenos Feminicídios do dia-a-dia

Esse texto-desabafo meu não é novidade - tanto pelos abusos que são vividos ainda todos os dias por milhares de mulheres ao redor do mundo, quanto pela data em que foi escrito: 11 de abril de 2017, mas o ocorrido mesmo tinha sido 7 anos antes. Eu o tinha publicado via pseudônimo, pelos óbvios medo e vergonha que acompanharam esse fim doentio a um casamento que durou quase 12 anos e rendeu 2 filhas. Mais que isso: ao fim do relato ficam ainda mais óbvias as razões que me estimularam a permanecer calada: o Patriarcado ainda existente de forma tão sólida, o que transforna a vida de mulheres como eu (e não só) um mero objeto de negócios na visão e nas mãos de homens brancos (neste caso, meu pai e meu ex-marido) que ainda hoje parecem mais agir como colonizadores.

Segue então o relato. Aviso desde já que pode provocar gatilhos psicológicos (crises de ansiedade, por exemplo) pois relata um abuso sexual com muito mais detalhes do que eu gostaria. Mas atesto a veracidade dos fatos e talvez hoje eu ainda seja capaz de mais detalhes se eu me esforçar...

"Hoje não vim escrever poesias. Porque se tem um tópico que dói e eu não consigo transformar em algo bonito, são as relações violentas.

Eu mesma nunca apanhei, propriamente. Nunca recebi um tapa, nunca ganhei arranhões ou hematomas. E por muitos anos, achei que eu estava a salvo. Mas vivi uma série de outros abusos, todos citados nas cartilhas disseminadas nas redes sociais, aliás. Inclusive o estupro. Estupro dentro de um relacionamento em que confiei minha vida. Em que eu dormia tranquilamente ao lado do inimigo sem saber de seus planos e do que era capaz.


Quando comecei a perceber que aquela relação não me acrescentava nada de bom, só me adoecia, fiquei reclusa por 1 semana. Afinal não era fácil lidar com o fim de uma relação de mais de 10 anos com uma família formada. E eu ficava insegura quando pensava sobre o que esperava por mim dali em diante, depois de todo esse tempo isolada do mundo, fora do mercado de trabalho, afastada dos amigos... Mesmo assim, pesei prós e contras e decidi acabar com aquilo. Ele dizia que não tinha pra onde ir, e pediu pra permanecer na mesma casa que eu por algumas semanas, até encontrar onde ficar. Passei a dormir no quarto das crianças, e nesse tempo, houve meu aniversário de 30 anos, data importantíssima pra mim.


Ele me viu convidando meus amigos na internet pra comemorarmos na Lapa. Com o discurso de "vamos nos separar com um bom relacionamento, em nome das boas lembranças e das nossas crianças...", ele perguntou, quase humildemente, se seria possível ele ir também. Eu disse que era ok, mas que ele não mantivesse a ilusão de que, mais uma vez, eu cederia e reataria.


E lá fomos nós. Só quem compareceu foram os amigos dele. Fui com grana contada pra tomar uns 2 drinks, que mesmo fraquinhos, seriam o suficiente pra me deixar "alegrinha". Em alguns momentos, eu me incomodava porque ele forçava a barra de ficar abraçando, como demarcasse território, ou achando realmente que se eu estivesse bêbada, poderia me "reconquistar".


Eu tinha batido minha cota, quando outras bebidas chegaram sem que eu pedisse. Ele dizia que tinha pedido por mim, e mesmo que eu argumentasse que eu não tinha grana pra pagá-las, ele dizia que era meu "presente de aniversário". Mal sabia eu que seria o pior presente da minha vida.


Na quinta ou sexta dose, eu estabeleci que eu não beberia nada, mesmo que ele insistisse, independente do que chegasse à mesa ou se alguém pagaria por mim. Recordo apenas de nos levantarmos da mesa e enfrentarmos a fila pro caixa pra pagar a conta, mas daí em diante, só lembro de flashes. Lembro de, na fila, ele ficar segurando minha mão e eu me afastando (mas não muito, senão eu sairia da fila de pagamento e eu fazia questão de pagar minha parte). Lembro dele querendo discutir comigo por ciúmes de d'uns amigos que ele mesmo levou. Depois lembro das pessoas se despedindo de mim e eu simplesmente sem conseguir reagir nem responder. Compreender e balbuciar palavras desconexas já era um grande desafio pra mim.


Depois lembro de flashes d'eu ter sido praticamente carregada até o carro de uma amiga (dele). Eles conversavam animadamente nos bancos da frente, enquanto eu, largada no banco de trás, tentava entender o que tava acontecendo. Já bebi muito mais de bebidas muito mais fortes, eu nunca tinha vivido aquilo! A visão um pouco turva, eu não conseguia entender o que me perguntavam, menos ainda elaborar uma resposta e dá-la.


E os flashes, apenas eles, vão prosseguindo, às vezes fora de ordem. Lembro dele segurando meu braço pr'eu não cair da escada de casa. E que quando botei o pé em casa, logo corri pra cama, porque eu REALMENTE precisava dormir. Eu não tava passando mal, mas... Também não tava bem.


Foi quando ele veio pra cima de mim na cama. Eu insisti que eu só queria dormir, que eu não queria nada com ele. Ele não aceitou e seguiu em frente mesmo assim. Quando percebeu minha resistência (ainda que sem forças e sem coordenação motora), ele se aproveitou por ser grande e, com uma mão segurou meus 2 pulsos, e com a outra arrancou minha roupa. Eu tentava chutá-lo pra longe, me debatia, mas meu corpo não respondia a contento. Daí foi a primeira vez que "apaguei".


Daí em diante só lembro mesmo de pequenos flashes. Em um momento eu achei que ele realmente tinha desistido, pensei que ele também estaria bêbado demais e tinha desistido do que queria fazer. Antes fosse!! Ele só tinha ido ao armário buscar o que parecia ser um saco de plástico preto com algumas coisas dentro. Ele ficou procurando algo dentro desse saco, pareceu ter encontrado, e eu não identifiquei que objeto era. Apenas lembro que era cilíndrico, porque foi introduzido no meu canal vaginal. Meu corpo já não obedecia mais minha ordem de sair correndo dali, ou, no mínimo, gritar, me debater, qualquer coisa. Eu era um cadáver de sangue quente naquela cama, apenas. Nesse momento comecei a compreender de que tudo tinha sido planejado. Me embebedar (antes d'eu me dar conta de que eu na verdade fui dopada) e usar todas aquelas "coisinhas" do saco preto em mim, da forma mais vil, sem o mínimo de consideração pelas "boas lembranças e a boa relação pelas crianças". Naquele momento ele passava de "homem que mais confio no mundo", para o "homem mais nojento do mundo". Traiu minha confiança, dentro de casa, mais uma vez. E no dia seguinte - isso me deu ânsia de vômito - ele fingiu, cinicamente, que nada tinha acontecido, chegando a me colocar dúvidas do pouco que eu lembrava.


Mas o corpo grava sinais, e quando percebi, ordenei que ele se mudasse. Em nome da nossa "boa relação com as crianças". E em nome disso, e por causa da vergonha, eu não denunciei. Eu só tinha tido coragem de contar, quase pedindo uma orientação 3 dias depois, aos meus pais. Mas tudo que ouvi deles foram expressões do senso comum, como "c* de bêbado não tem dono mesmo... Quem mandou beber?" e "ele é seu marido! Ele tem direito, ué!". Mais uma vez, em poucos dias de ter completado 30 anos, pessoas que eu mais confiava no mundo me viraram as costas.


Anos depois, hoje consigo falar que sofri ESTUPRO MARITAL, e que eu sofri várias outras vezes quando eu tomava calmantes pra dormir. Da primeira vez que tive coragem de declarar publicamente, ele ficou irritado, porque era implícito que era ele o criminoso - e a maior preocupação dele sempre foi sua imagem pública. Então, com ajuda dos amigos dele, arrecadou provas do que eu teria dito e fez um B.O. contra mim por calúnia. Dei a sorte de pegar um delegado que parecia experiente nessas situações e que, mesmo sendo um homem desconhecido, conseguiu me amparar naquele momento, como meus pais não conseguiram, no momento em que depus. O processo seguiu pra uma audiência de reconciliação, pra onde fui munida de todas as provas do que eu tinha a dizer, independente do abuso que citássemos. Nem precisou: com certeza ele foi muito bem orientado por seus caros advogados de que ele só ia perder muita grana dando continuidade naquilo, então, antes mesmo que eu pudesse abrir a boca, ele pediu pra anular a acusação. Eu ainda saí daquela sala com a "ameaça" da juíza de que se eu repetisse aquilo, eu seria reincidente. Eu nem pensei em nada, eu só queria sair correndo daquela sala só pra não olhar pra cara daquele agressor, ou mesmo ser, mais uma vez, assediada por ele, mesmo ele já estando casado novamente - praticamente desde que nos separamos, aliás.


Vocês acham que o Feminismo é mesmo composto por MIMIMI, não é? Vocês, que assim o dizem, não aguentariam 24 horas na pele de uma mulher. Nem em culturas ainda muito castradoras e misóginas, nem na nossa sociedade "livre e pós-moderna". Os últimos casos que têm pipocado na mídia só reafirmam que nós, mulheres, não vamos mais segurar caladas. Vocês, homens, podem até conseguir nos vencer na força, mas com certeza vão ter que nos ouvir GRITAR!!


Qualquer pequeno abuso que se tenha percebido, dê um corte. Não aceite desculpas. Não deixe passar. Tudo começa com um abuso "só de leve", e a gente vai relevando, e os abusos chegam a essa situação que contei por hoje.


Acolham-se, moças!! Acolham-se!! Só a União pode nos proteger.


ESTUPRO NÃO É SEXO! ESTUPRO É DOMINAÇÃO DE OUTRO SER HUMANO."

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