"É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, conta histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor por onde passo todos os dias. É agora que quero dividir maçãs, achar o fim do arco-íris, pisar sobre estrelas e acordar serena."
(Caio Fernando Abreu)
Eventos atrasados. Estresse. Insatisfação geral. Mesmo concentrado ao caos, era nela que seus pensamentos voavam. De alguma forma ele sabia onde ela estava. De alguma forma telepática, esperava estar chamando por ela. E os chamados surtiram efeito.Quando ela adentra, tudo parece em camera lenta. Ela olha em cada rosto buscando o dele. Depois finge indiferença e se concentra em buscar um lugar prá sentar. Mal sabe ela que ali, em meio a milhares de pessoas, ele a identificou. Ele a segue com o olhar. Fica à espreita aguardando o momento certo de se aproximar. E o faz.
Ela acha graça do número, acha graça da mudança de visual. Ele não quer parar e sentar ao lado dela logo de cara, fica no entorno - conversa com um, conversa com outro, mas não sai da proximidade. Ela nota e, de alguma forma estranha, se sente acolhida. Gosta dele por perto.
Ele, de longe, não tira os olhos dela. Repara como ela interage com outros, como ri largamente, e de certa forma sente inveja dos seus amigos, por estarem tocando-a como ele mesmo gostaria. "Afinal, o que me falta?". Esperou então os amigos se afastarem, e lá foi se juntar a ela, talvez para interagir da mesma forma, talvez só para conversar. A essa altura, já não importava, só queria estar perto.
Ela notou seu vulto chegando por trás, nem precisou olhar: pela taquicardia que a atacou subitamente, ela já sabia quem era. Ele carregava consigo uma aura, uma energia que ela detectava quase inconscientemente. Os amigos que sabiam do fato davam nomes, chamavam de "magnetismo", mas ela não estava preocupada em nomear. Bastava entender que aquilo funcionava de forma muito eficaz. E assim ele se sentou ao seu lado, conversaram randomicidades, ele fingia que não tinha assistido às cenas por ela vividas pouco antes e perguntava tudo que havia acontecido. Ele estava com ciúmes ou simplesmente queria ampliar os assuntos? Nem ele sabia... Mas trocavam, assim, olhares, sorrisos, confidências. Até o momento em que citou "a pessoa que mora comigo".
Ela, que não gostava de rodeios, foi direta:
- Você quer dizer, "sua mulher"?
Ele baixou os olhos e puxou a boca prá direita. Não queria concordar, mas essa era a verdade. Ela o observava, com olhar altivo - uma muralha construída para que ela mesma não desmoronasse. Até que ela finalmente baixou os olhos também, e o acompanhou na tarefa de fazer dobraduras com os informativos que receberam. Quase ao mesmo tempo, uma amiga a chama prá ir lá fora, um amigo o chama num canto prá conversar. Ele não tem o que fazer a não ser a seguir com o olhar.
Sua amiga fala, fala, mas ela não tira os olhos da antiga arquitetura do lugar. Ela pensa que será melhor não voltar. Mas seu coração bate forte pedindo por um abraço. Por um momento, esquece o "tal magnetismo", e resolve seguir a razão só de vez em quando.
Ele ouve o amigo, mas morde os lábios nervosamente pensando se a verá novamente. Queria simplesmente sair correndo e abraçá-la, mas raciocinava e raciocinava - talvez melhor não.
Até que seu coração dá um clique.
Até que o coração dela dá um clique.
Ela para enquanto a amiga continua andando. Num movimento lento, dá meia volta, inicia a caminhada com passos inseguros, que logo ficam impacientes. Ela caminha sem rumo, o coração é o guia.
Ele pede licença, caminha para a saída, desvia de muitos, sai do salão e olha em volta. Não sabe bem prá onde está indo. Coça a cabeça e seu coração toma o rumo. Atravessa uma grande e antiga porta de madeira e, como se soubesse o que está fazendo, acelera o passo.
No corredor, em meio a vários transeuntes, seus olhares se encontram de longe. Ficam aflitos tentando um caminho mais rápido, as pessoas não colaboram. Finalmente se encontram: peito contra peito, coração contra coração. Um abraço forte de quem não quer deixar seu lar. Pessoas continuam andando à volta, eles não reparam. Simplesmente ficaram invisíveis na multidão. Se teletransportaram para um universo paralelo, não existem mais nessa galáxia.
E ficam ali, por alguns minutos enlaçados, balançando como quem dança uma valsa inaudível. Os olhos fechados, corações serenos, sorrisos irrepreensíveis. Aos poucos, se soltam, sem se afastarem. Olham um no rosto do outro como quem quer memorizar, adentram nos olhares reciprocamente. Ambos sabem que é hora de ir, voltar pro planeta Terra.
Finalmente, cada um retorna lentamente para onde estava. Sem trocar nenhuma palavra. Não era necessário, porque em silêncio era que trocavam as maiores verdades.
Corações não são hipócritas.
Shalom!
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